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terça-feira, 18 de maio de 2010

Na noite de 19 de Maio, o primeiro-ministro Li Peng anunciou a proclamação da lei marcial na China.


Numa quinta-feira do fim de Abril de 1989, 160 mil universitários de Pequim paralisaram a vida na capital chinesa. Desde 1976 que não se via coisa igual e o movimento ameaçava multiplicar-se e continuar com a sua empreitada, com uma manifestação marcada para 4 de Maio. Esta multidão de jovens pedia “maior liberdade” e “maior democracia”. Deng Xiaoping era o líder do regime. Tinha 85 anos.
Logo em Abril, escreveu a imprensa de Hong Kong da época, o arquitecto da reforma económica da China encontrou-se com o seu primeiro-ministro, Li Peng, para recomendar a punição severa do movimento: a detenção dos seus líderes e a utilização de todos os meios policiais possíveis.
Zhao Ziyang, o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, encontrava-se na Coreia do Norte, na sua primeira deslocação oficial ao estrangeiro. Com o mês de Abril a terminar, falava-se já na hipótese de ser substituído no cargo. Os protestos duravam há duas semanas e ultrapassavam os limites da capital. Zhao era aliado ideológico de Deng e foi um dia apontado como seu possível sucessor, mas era um moderado. Não conseguia controlar a onda de protestos.
A 6 de Maio, o jornal Tribuna de Macau, que era então publicado semanalmente, dava conta que meia centena de alunos da Universidade da Ásia Oriental (a actual Universidade de Macau) tinham feito a pé o percurso entre a Taipa e o centro de Macau para entregarem na delegação local da Agência Xinhua um abaixo assinado em que demonstravam solidariedade com os seus colegas de Pequim.
Dos pouco mais de mil alunos da universidade do território, 879 assinaram a missiva. Na rua, pediram democracia e liberdade. Apelaram às autoridades chinesas para que dialogassem com os estudantes de Pequim. Desde 1966 que não se via coisa igual em Macau. Começava-se a duvidar do que seria do território depois da transferência de administração. A declaração conjunta era coisa fresca, com dois anos apenas.
A queda do moderado
Na noite de 19 de Maio, o primeiro-ministro Li Peng anunciou a proclamação da lei marcial na China. Zhao Ziyang anunciou a sua demissão, menos de um ano depois de ter assumido o cargo de secretário-geral do PCC. Era Li Peng que ia resolver o caos na Praça de Tiananmen. Zhao tinha sido apontado como o real instigador das manifestações – que obrigaram à alteração do programa da visita de Mikhail Gorbatchov à China, para a cimeira sino-soviética.
Nessa manhã, Zhao Ziyang tinha, sem êxito, apelado à desmobilização dos estudantes, que deram início à sua revolta depois do falecimento de Hu Yaobang – ironicamente, o antecessor de Zhao no Partido, afastado do cargo por razões semelhantes. A saída de cena de Zhao Ziyang foi seguida pela condenação à prisão domiciliária. Assim permaneceu até 2005, ano da sua morte.
Em meados de Maio de 1989, a Praça da Paz Celestial não estava só ocupada por estudantes. Trabalhadores, camponeses, funcionários, soldados, polícias e intelectuais davam corpo a um protesto com um desenlace imprevisível. O Exército Popular de Libertação também andava na rua. Colunas de tanques e camiões deixavam prever o pior. Os dirigentes estudantis, escrevia a imprensa da época, apelavam aos manifestantes para que não reagissem à força das autoridades policiais e militares.
Muitos deles nem sequer teriam força para o fazer. Mais de três mil estudantes estavam em greve de fome. Os que eram levados para o hospital eram substituídos por outros. Tiananmen continuava cheia de gente e de cartazes, a Federação dos Sindicatos de Pequim ameaçava com uma greve geral se as autoridades não respondessem aos pedidos dos grevistas.
A 20 de Maio, a Tribuna de Macau relatava mais uma acção de protesto dos estudantes da Universidade da Ásia Oriental. Saíram para a rua para angariarem fundos destinados a apoiar os seus colegas das universidades de Pequim.
O jornal reproduzia ainda parte do editorial do matutino Ou Mun. Curiosamente, e não obstante a sua ortodoxia, a publicação em língua chinesa manifestou a sua “sincera homenagem” aos grevistas de Pequim, que tinham “espírito patriótico”. O jornal aconselhava a cedências mútuas entre manifestantes e autoridades chinesas, mas dava um conselho a estas últimas: “Deverão amar e respeitar o povo”.
O “erro estratégico” dos estudantes
Na edição de 27 de Maio da Tribuna, Tiananmen salta para a primeira página do jornal, ilustrada com a imagem de uma multidão em frente às carismáticas Ruínas de São Paulo. Manifestantes com faixas brancas na cabeça erguem um mar de cartazes, onde se destacam duas palavras em português: “Liberdade. Democracia”.
Nessa semana, os jornalistas José Rocha Dinis e Gonçalo César de Sá tiveram uma conversa telefónica sobre a estratégia dos estudantes da capital. Ambos entendiam que o movimento estudantil tinha cometido um erro estratégico, ao tentarem derrubar Deng Xiaoping.
O resultado, referia o director da Tribuna, foi o afastamento de um “dos líderes reformistas com mais capacidade, Zhao Ziyang”, como em 1986 acontecera com Hu Yaobang. Rocha Dinis não escondia o pessimismo em relação ao desfecho da situação. Parte significativa do primeiro caderno do jornal dava conta da evolução dos acontecimentos na República Popular.
Nessa semana Zhao tinha sido acusado de contra-revolucionário, numa purga que envolveu vários outros altos quadros chineses e membros do Partido. No dia 22 de Maio as descrições davam conta de um impasse em Tiananmen. A lei marcial estava longe de ser respeitada e as tropas cercavam a praça, mas recusavam-se a intervir. Os milhares de manifestantes não arredavam pé.
No dia seguinte circularam notícias que indicavam a pressão dos reformistas chineses para que Li Peng abandonasse o cargo. Em Macau, 50 mil pessoas saíram à rua para pedirem a demissão do primeiro-ministro. Em Tiananmen os estudantes não davam sinais de quererem abandonar a sua missão. De Xangai e Guangdong chegavam notícias de novos protestos.
Dos receios e do impasse
3 de Junho de 1989. Na capa da Tribuna de Macau lia-se que Mário Viegas, “recitador ambulante”, se iria mostrar no território. Mas a realidade de Pequim estava cada vez mais presente no quotidiano da cidade. “Milhares de soldados no centro de Pequim”, lia-se na primeira página do semanário, que fazia o balanço da semana em mais uma série de páginas especiais dedicadas ao tema.
“O movimento reformista que [...] será o vencedor ‘a longo prazo’ (não há força que consiga calar os ideais da Democracia e Liberdade porque eles fazem parte do ser humano) entrou numa fase defensiva, e é bem possível que saia desta experiência com alguns ‘mártires’”, lia-se no editorial.
Na leitura dos acontecimentos da semana, Rocha Dinis escrevia que “ao que tudo indica, os conservadores estão agora completamente instalados na ‘máquina partidária’ e governativa, e preparam-se para uma ‘caça às bruxas’, talvez não muito espectacular porque na China se passa tudo com um certo recato, mas de qualquer modo uma efectiva remoção de todas as pessoas ‘incómodas’ mesmo que não muito intervenientes no movimento.”
O que aconteceu demonstrou que a China – apesar de, por esses dias, estar no centro dos olhares da comunidade internacional, mesmo com a imposição da censura aos jornalistas estrangeiros -, se esqueceu do seu habitual pudor de um modo quase impensável.
Ainda na edição de 3 de Junho, a Tribuna dedicava um texto a Wu’er Kaixi, o líder estudantil de Tiananmen que ficou conhecido para a História por se ter reunido com Li Peng. Em greve de fome, Wu’er Kaixi foi filmado pelas câmaras de televisão em pijama (estava a receber tratamento médico) e desafiou por várias vezes o primeiro-ministro, numa abordagem pouco convencional para os seus 21 anos na conservadora China.
Ainda antes do dia em que o pior aconteceu, por ter advogado a desocupação da praça, Wu’er Kaixi foi substituído na liderança do movimento por Wang Dang. Mas o jovem da minoria étnica uigur, filho de um alto dirigente do PCC de Xijiang, voltaria a Tiananmen, para fugir em seguida. Acabaria por ser resgatado via Hong Kong pela operação “Yellow Bird” (ver texto nas páginas 10 e 11).
Dias antes, a 27 de Maio, as notícias que chegavam da capital chinesa indicavam que os estudantes se preparavam para abandonar a praça. No domingo a história era outra: afinal, decidiram continuar.
O canal estatal chinês deu grande ênfase a uma manifestação pró-governamental ocorrida em Pequim. “Os jornalistas estrangeiros foram autorizados a cobrir o acontecimento e a enviarem imagens, por satélite, para os seus países, o que não tem acontecido em relação às manifestações estudantis”, explicava a imprensa.
Em Macau, o Ou Mun acusava as autoridades chinesas de “prepotência e obscurantismo” pela imposição de restrições à liberdade de imprensa. “A boa imagem da China com a sua abertura e reformas também ficou visivelmente prejudicada”, sentenciava o matutino.
Na sexta-feira, dia 2 de Junho, “200 mil soldados entraram no centro da capital chinesa”, anunciava a Tribuna. No jornal Comércio, escreveu-se em editorial que “seja qual for o desfecho da crise, os tempos estão a mudar no mundo e não interessa certamente à China – seja quem for que comande o país – surgir perante a comunidade internacional com a credibilidade diminuída por não saber cumprir os acordos que assina”.
No Jornal de Macau a abordagem era diferente. “A China vai continuar a prosseguir o seu caminho, abrindo e fechando a torneira das reformas e a tímida democratização do país como, se calhar, até tem que ser. O que se espera nos anos que estão para vir é o mesmo que Nelson exigiu dos seus homens antes da batalha: que cada um cumpra o seu dever. Que a China se vá modernizando ao ritmo que pensar possível e que Macau e Hong Kong continuem a provar pelo exemplo que a liberdade e o liberalismo económico produzem mais fartos do que a apropriação colectiva dos rendimentos. Nada mudou para melhor? E o que passou a ser pior?”
A madrugada vermelha
Era madrugada quando começou o massacre. Os militares e os tanques do Exército Popular de Libertação foram enviados para controlar a situação. O Comando Militar de Aplicação da Lei Marcial avisou que melhor seria se os civis não saíssem de casa, explicando que “seriam utilizados os meios necessários para pôr fim à anarquia”.
A entrada das tropas na capital foi recebida com a oposição activa dos cidadãos de Pequim, que conseguiram causar baixas entre os militares. Mas não conseguiram deter a força bélica chinesa. No percurso para a Praça de Tiananmen, as tropas dispararam contra os manifestantes e “limparam” tudo o que lhes apareceu pela frente.
O centro de Pequim foi cercado por milhares de soldados. O “assalto final” fez-se em três frentes, com a utilização de blindados e rajadas de fogo, algumas delas vindas do céu: havia militares nos telhados nos edifícios da praça, incluindo no monumento onde está sepultado Mao Zedong.
Os soldados terão começado por atirar para o ar mas, a dada altura, dispararam aos alvos. Foi o caos, o salve-se-quem-puder entre corpos ensanguentados. As notícias da altura explicavam que os tiroteios intensos terão durado 45 minutos. Alguns estudantes tentaram resistir e há fotografias de um universitário com uma garrafa a arder na mão, pronto para lançar o objecto.
A desocupação da praça não foi imediata. Algumas centenas de manifestantes permaneceram sentados no chão da praça, onde estavam também corpos em número incerto. As sirenes das ambulâncias rivalizavam no espaço sonoro dos disparos.
Na altura ninguém soube calcular o número de mortos e feridos. Houve quem tivesse falado em mil, mas os manifestantes faziam estimativas na casa dos 10 mil. O Governo chinês admitiu a morte de algumas centenas de pessoas, soldados incluídos. Ainda hoje não se se sabe quantas vítimas fez Tiananmen.
A China a andar para trás
“Interessa muito pouco saber se foi um ou foram milhares, se eram pela liberdade ou pela ditadura, estudantes ou militares. Nas ruas da capital chinesa correu sangue em abundância, e revoltados na nossa mentalidade ocidental, escasseiam-nos as palavras para comentar tão hediondos actos que atrasaram, de séculos, a civilização chinesa”, constatava Rocha Dinis no editorial publicado a seguir ao massacre.
Os dias que se seguiram não foram calmos no país. A tensão alastrou a outras cidades chinesas e colocava-se mesmo a possibilidade de a China estar à beira de uma guerra civil.
Em Macau, muitos residentes acorreram aos balcões do Banco da China para encerrarem as suas contas, apesar do Governo assegurar que não havia qualquer risco de os clientes perderem as suas poupanças. À época, o já contestatário Ng Kuok Cheong trabalhava no Banco da China, emprego que viria a abandonar pouco tempo depois. O actual Chefe do Executivo, Edmund Ho, era presidente da Associação de Bancos de Macau e anunciou que a entidade bancária contava com o total apoio da banca local.
Carlos Melancia era o Governador de então. À Rádio Macau, disse “não poder aceitar como desejável, ou sequer como medida adequada, o uso da força militar, ainda por cima contra pessoas que não estavam armadas”.
Nas ruas, a população de Macau demonstrava a sua solidariedade para com as vítimas de Tiananmen. Acções de protesto ordeiras “perfeitamente defensáveis e aceitáveis”, nas palavras de Melancia. O Ou Mun contou 100 mil pessoas na maior das várias manifestações da altura.
Aqui ao lado, em Hong Kong, milhares de jovens manifestavam-se e há registos de confrontos com a polícia, assim como existem relatos sobre os aviões fretados pelo homólogo de Carlos Melancia, Sir David Wilson, que foram à China em operações de resgate. Em Macau, o pai do jovem Wen Chi Cheong há uma semana que não sabia do paradeiro do filho, a estudar na capital, e preparava-se para rumar a Pequim.

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